segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Em ritmo de obsessão.


Os contos proibidos do Marquês de Sade.

Arnaldo Antunes e Marisa monte começam a canção Paradeiro com a seguinte pergunta: “Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de nós?”. Assistindo “Os contos proibidos do Marquês de Sade”, de Philip Kaufman foi impossível não me perguntar isso quase que o tempo todo. O marquês me parecia uma bomba de desejo prestes a explodir a qualquer momento: onde aquele desejo iria parar? Haveria paradeiro dentro ou fora dele? O filme é um tratado sobre ética, poder e obsessões. Um convite a reflexão.
Em primeira vista, ou se fosse clinicamente, numa primeira entrevista, vi o Marquês como alguém que tinha um objeto fixo de desejo: o sexo e todos os seus desdobramentos, todas as suas possibilidades, toda a sua oferta de gozos possíveis e intermináveis sem nenhuma culpa moralizante ou moralista, muito pelo contrário, quanto mais perversa fosse a proposta, maior era a recompensa do gozo – gozando duplamente, primeiro no ato de infringir os costumes já estabelecidos e depois no sexo em si, ou melhor, no caso do Marquês, na descrição sexual que ele constrói em forma de narrativa a partir de sua capacidade de escritor.
O marquês, no meu primeiro olhar, repousou como um hedonista: cego pelo seu próprio desejo de prazer, só lhe interessava o que pudesse lhe satisfazer e a sua vida ganhava sentido nessa busca pelo gozo – em escrever sobre esse gozo - e assim sendo, as necessidades do outro ficavam sempre inacessíveis para ele, com sua apatia pela empatia. O Marquês era pra mim, a perfeita descrição do que Freud definiu como homem que não se inseriu na lei subjetiva que rege o mundo, preferindo estar voltado apenas para o lado dos instintos. Em sua obra, Mal estar na civilização, Freud aborda questões da moral e da cultura que são essenciais para que possamos viver em sociedade. Penso que o Marquês não se interessaria em ler essa obra. Em primeira vista, o Marquês me pareceu resumido dessa forma: um compulsivo sexual que gosta de exibir sua criatividade para a perversão, chocando ao ignorar os princípios regentes e fazendo sucesso entre os leitores por servir de espelho para a perversão reprimida de cada um, num acordo de transferências digno de análise ou, sendo o portador do sintoma de uma sociedade. “Haverá paraíso sem perder o juízo?”, prossegue Arnaldo Antunes ecoando em minha mente.
Num segundo momento, depois de algumas peripécias inconseqüentes nas quais o Marquês pretende afrontar diretamente o alienista do manicômio - que embora já seja um senhor de idade, casa-se com uma jovem de dezesseis anos até então criada por freiras – seu maior objetivo é mostrar que por trás da “roupa moralista” que os homens usam socialmente – inclusive os que se auto-intitulam bons homens - eles estão tão sujeitos (enquanto a-sujeitados) a seus desejos e perversões sexuais, quanto o próprio Marquês, que se difere apenas pela coragem de assumir e se tornar porta voz do seu desejo. Como punição o Marquês tem todas as suas penas, tintas e folhas de papel tomadas pelo abade que toma conta do manicômio. O que se sucede, é, a meu ver, um desdobramento interessante para a história. O Marquês então começa a sofrer bastante com a ausência da possibilidade de escrever e entra numa violenta “crise de abstinência”. A partir daqui, ele se transforma e nosso olhar sobre ele, para não se banalizar, precisa se transformar também porque se continuarmos a vê-lo apenas como um sujeito obsessivo por sexo,perdemos também sutilezas de suas outras obsessões. O Marquês vai fazer de tudo para que não calem a sua pena: escrever com vinho, num lençol branco e até mesmo escrever com sangue numa parede branca quando nada mais de sua dignidade sobrar. O Marquês vai abrir mão de tudo: luxos, dignidade, uma vida sem dor e até mesmo da própria vida, lutando pelo direito de viver seus desejos – o único jeito de vida possível para ele. Dizem que quem escreve deseja tornar-se imortal (os escritores da Academia Brasileira de Letras, por exemplo, ao receberem uma cadeira, tornam-se “imortais”), assim como dizem psicanaliticamente que o gozo sexual é uma forma de manter-se vivo, além de serem a possibilidade de geração de filhos que são a nossa continuidade no mundo. Me pergunto: será que por detrás de todas as obsessões do Marquês, o que ele queria era uma vida notória ou uma vida imortal? Será que ambas?
“Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de um vício?” O Marquês de Sade provavelmente responderia não a essa questão, assim como Cazuza. Os dois passaram a vida correndo contra o tempo para exaurir a maior quantidade de prazer possível, os dois preferiam viver poucos anos a mil do que mil anos de pouco. E muito ainda era pouco para eles. Pagaram com a vida, a vida que levaram. Contudo, nesse segundo momento do filme, eu me questionei: qual é exatamente o objeto de gozo do Marquês: o sexo, a infração ou a escrita? Penso numa tríade impossível de ser dissociada – talvez se vivo nos nossos tempos em que tudo é permitido, ele fosse mais um que não consegue gozar. Ao mesmo tempo, ao captarmos que seu gozo vai para além do sexo, estamos percebendo que o seu sujeito é mais complexo e tem mais implicações do que anteriormente supúnhamos e isso temos de levar para todo e qualquer paciente que atendermos: há sempre algo que escapa e nunca captamos, mas há também sempre camadas que são desveladas com o aprofundar do nosso olhar e conhecimento da causa. O mesmo homem que por uns era visto como compulsivo sexual,era visto por outros como um infrator da moral e por outros ainda como um escritor apaixonado. Certamente havia ainda mais homens dentro desse homem, certamente se ele não tivesse vivido em tempos repressores e tempos em que a loucura era tratada com choques, pancadas e “afogadinhas” pudéssemos construir outro perfil dele, perceber outras facetas por detrás dos vícios (já nos lembra Lacan, resumindo a psicanálise “você É o seu sintoma”). Fato é que, ele foi até o seu fim, um sujeito do inconsciente, um sujeito regido pelo seu desejo (constitutivo) de engolir o mundo num gole sem fim ou de nunca conhecer o dissabor de pisar no pedal do freio. Morreu desejando a vida. Morreu desejando. Foi sujeito de suas escolhas e pagou o preço cobrado por elas. “Haverá paraíso sem morrer?”

PS: Quem se interessar e quiser saber mais, segue a indicação de três textos:
1) O psicanalista italiano Contardo Calligaris falando sobre o filme “Cazuza”
2) A jornalista Eliane Brum na sua coluna no site da revista Época
3) A letra de Arnaldo Antunes na íntegra e com vídeo

2 comentários:

  1. Bom, qualquer texto que começa citando Arnaldo Antunes se torna agradável de ler. De qualquer maneira, eu acho que o maior êxito é entrar na raíz do filme. Se analisarmos a filmografia de Kauffman, encontraremos filmes que mexem exatamente com estas questões levantadas por você neste texto. Foi assim no roteiro de "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", "Adaptação" e "Quero ser John Malkovich". Então, de alguma maneira, ele consegue dialogar muito com a psicanálise (eu não entendo nada disso, mas nada mesmo).

    Sugiro que você assista, além deste filme comentado, o excelente "Sinédoque, Nova York". É genial! Quando o filme acaba, você fica simplesmente perplexo na poltrona. É como se você passasse por algum tipo de experimentação no cérebro, tamanha são as confusões que ele entrega aos seus personagens. Nesse filme ele escreve e dirige..

    beijos, parabéns pelo blog..
    continue com ele, tá bom?

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  2. Oi.

    Adorei seu post y seu blog. Ademas de disfrutar la lectura de su analisis es una excelente oportunidad para mi de practicar mi portuñol.

    Actualmente estoy leyendo a Tosltoi, y creo que una persona con sus herramientas podria hacer excelentes analisis sicologicos de los personajes tolstianos, los que eran tratados en forma profunda y compleja

    Paraveins y mantengase escribiendo......

    Saludos

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