quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

O samambaia.



“O que faz um psicoterapeuta? O que é o trabalho com a clínica psicológica?”. Se na faculdade nós discutimos isso e muitas vezes não chegamos a uma conclusão assim tão consolidada, fico pensando em que tipo de satisfação podemos dar aos curiosos que se interessariam por conhecer a área. Será que podemos explicar? Acho que além da explicação, sendo esse um blog com leve inclinação a psicanálise, devo tentar proteger a teoria das fantasias que – infelizmente- a cercam.
O psicólogo clínico é em primeiro lugar psicólogo e tem a função de prestar atendimento as demandas psicológicas do paciente de acordo com as teorias e técnicas de uma linha teórica específica. Aqui vale uma explicação mais aprofundada: as linhas teóricas surgem basicamente a partir de duas filosofias diferentes, chamadas de mentalismo e comportamentalismo. De maneira simplificada, as linhas que acreditam na existência e análise da mente são as originadas do mentalismo e as que se voltam para a análise do comportamento são as comportamentalistas. A idéia é de promoção de saúde mental e o trabalho visa que o sujeito/cliente/paciente (sim, cada linha teórica vai chamar de um jeito) possa arranjar acordos possíveis que melhorem o cotidiano de sua vida.
A partir daqui vou usar um exemplo sobre o filme Divã, de José Alvarenga Jr. e vou me ater mais a (desmistificar) psicanálise em si do que a psicologia. Uma dúvida freqüente que as pessoas tem é: “ok, eu vou na terapia, mas o que eu vou falar lá? Por onde eu começo?”. Normalmente, antes da psicoterapia em si, acontecem entrevistas/triagens/primeiros encontros (sim, cada abordagem nomeia de uma forma) onde o paciente/sujeito/cliente (sim, cada abordagem nomeia de uma forma) pode dizer por que ele está ali, o que o levou até aquele consultório, falar de si, contar um pouco da sua história e o psicólogo também têm a chance de explicar como trabalha, que método aplica, o que pode acontecer com a pessoa durante o processo e como é que aquele espaço terapêutico vai se desenhar.
Numa discussão em sala (que não reproduzirei com total fidelidade), já ouvi dizerem que Lopes, o psicanalista de “Divã, o filme” dava “muita raiva, porque ele não falava nada e esse era o problema dos psicanalistas”. Em outro momento, ouvi também que “os psicanalistas não constroem uma relação com o paciente, a gente falta uma seção e eles nem nos ligam”.
Bom, sobre isso eu realmente gostaria de explicar algumas coisinhas que são da ordem teórica da psicanálise. Vamos por partes:
1) O porquê do silêncio.

A psicanálise trabalha com a idéia de mente e com a noção de uma divisão mental que se organiza entre consciente e inconsciente. Seu objetivo é trabalhar o inconsciente (para Freud, principalmente, “o sujeito que fala”, ou o consciente também tinham muita relevância e também precisavam ser escutados), ou seja, esse conteúdo inconsciente, não manifestado por não estar no plano da nossa consciência – aquilo que pensamos sem saber que pensamos, que sentimos e reprimimos, que esquecemos mas nos lembramos, que nos marcou e se perdeu e etc. – é a base e para ter contato com o inconsciente ela usa basicamente dois recursos: o discurso livre do sujeito (uma fala sem censura ou busca de ordem cronológica ou de ordem de sentido) e a análise dos sonhos. A coisa mais importante para o psicanalista é ouvir, ou seja, não, ele não está dormindo enquanto você está falando, mas para que você possa falar ele precisa fazer silêncio para lhe ouvir, senão, como ele poderia intervir sem saber no que está intervindo? Isso não significa que ele não pondere ou intervenha – tem a ver também com o estilo próprio de cada psicanalista.

2) O porquê da “não-relação” ( e o – bom – manejo do sintoma)

Em primeiro lugar, quero deixar claro que não acredito na possibilidade de uma interação sem que haja relação, mas acho que relação é uma palavra ampla e de fácil encaixe: há várias formas de interagir e se relacionar, e essa forma sempre vai depender de ambos os envolvidos na interação. Isto posto, vamos as explicações.
Antes de mais nada, a psicanálise trabalha com a noção de transferência que é um processo de projeção de características para o outro. Isso pode ser explicado de maneira mais acessível e simples: vamos pensar no ator que está interpretando o galã de Malhação nesse ano, Fiuk. Na novelinha, ele é Bernardo, um jovem músico, bonito, que seduz todas as garotas e é muito popular. Na novelinha, ele representa um signo, um personagem que idealiza o rapaz que as adolescentes gostariam de namorar. A confusão é: será que essas meninas que berram pelo Fiuk em aeroportos têm consciência de que ele NÃO é o Bernardo? Quem é o verdadeiramente desejado, o Bernardo ou o Fiuk? Será que alguma dessas fãs conhece de verdade o Fiuk, o que ele pensa, o que ele deseja, do que ele tem medo, como ele age com as mulheres – ou será que quando elas dizem “Fiuk, eu te amo” elas querem dizer “Bernardo, eu te amo”? A esse processo de atribuir características a alguém que não necessariamente são do conhecimento que já temos sobre a pessoa se dá o nome de transferência. Esse processo é muito importante para a criação do vínculo no início da terapia, por que assim o analista poderá servir de espelho para os sintomas do seu paciente e poderá servir de cabide para que o paciente o vista com a roupa de outros personagens da sua própria história. Como assim?
Suponhamos que um terapeuta esteja olhando para a paciente enquanto ela fala e ela diga “ai, porque você está me olhando com esse olhar do meu pai?” (situação parecida aconteceu e é sempre retratada por uma professora minha). Como poderia o analista olhar com o olhar do pai da paciente se ele nem sequer o conhece? A partir dessa “espelhagem”, ele pode questionar “que olhar é esse?” e a própria pessoa pode se dar conta do quanto aquele olhar interfere nas suas relações – será que todos olham pra ela com o olhar do pai dela ou ela que vê o olhar do pai dela em todos os olhares? E porque ela faz isso, já que ela não gosta daquele olhar? A isso chamamos de “manejo do sintoma”. Lacan, importante psicanalista, disse que somos os nossos sintomas e por isso o psicanalista busca transformar os sintomas dos pacientes em material de trabalho. O psicanalista precisa saber ler os sintomas além do discurso do paciente. Citando a mesma professora que citei no exemplo do olhar, ela sempre usava como exemplo um paciente que ela teve e que tinha dificuldades de relacionamento funcionando assim: nenhuma relação estável dele conseguia completar dois anos, porque quando esse prazo estava se esgotando, ele desaparecia e as mulheres ficavam loucas atrás dele, para que ele voltasse. Quando ele ia completar dois anos de terapia com a psicanalista, ele sumiu e ela não ligou para ele para pedir que voltasse – ao manejar o sintoma dessa forma, ele não só retornou a análise como eles puderam explorar como tinha sido aquela experiência para ele. Outro ponto relacionado a ligar ou não ligar, é que a psicanálise trabalha com a noção de sujeito desejante e precisa que esse sujeito se implique em querer fazer sua terapia – e como sabemos, um desejo genuíno não pode ser imposto ou cobrado, ele precisa ser despertado para além de todas as resistências que possam existir. Como cobrar presença de um sujeito que deseja se ausentar? Então, ligar ou não ligar, nesse caso, vai para além da educação do sujeito que é analista, as vezes pode ser sim um manejo do sintoma.
A transferência é muito importante, também, para a criação do vínculo e da confiança necessárias entre paciente e analista para dar continuidade ao tratamento.

3) O porquê de ser “pano de fundo”

Quando se cria um filho, cria-se para que dependa dos pais, precise sempre dos conselhos maternos e paternos e tenha dificuldade em andar com as próprias pernas ou para que ele aprenda a resolver seus próprios problemas, seja autor de sua própria história e possa viver sua vida? Para os que acreditam na segunda opção, é exatamente a mesma coisa com a terapia. Cada paciente é o autor de sua história e encontra suas respostas em seu próprio tempo e com sua própria dinâmica, embora os analistas sejam facilitadores do processo, é essencial que sejam substituíveis, é essencial que sejam esquecíveis, que sejam deixados de lado para que o sujeito possa seguir adiante sozinho. Não é possível dizer que um ano de terapia é bastante ou que quinze anos são excessivos, justamente por que o tempo do inconsciente não é cronológico.

Para cada atitude terapêutica, independente da abordagem, há uma teoria que suporta a técnica. Isso não significa que todos vão se sentir confortáveis na psicanálise, ou que todos vão gostar de sistêmica ou que todos tem que desejar fazer análise do comportamento – nada disso. Cada um vai se sentir mais confortável com uma abordagem e com determinado tipo de profissional, certamente, mas é importante que antes da gente sair por aí falando com certezas, a gente saiba do que está falando – muito além de saber do que não se gosta ou que tipo de abordagem não se quer levar para a vida. Para as dúvidas, que haja sempre espaço, porque é através delas que podemos vir a saber das coisas que até então desconhecemos. Duvidar é buscar. Duvidemos, então.

Um comentário:

  1. ler seu blog é como ler um manual de instruções de um jogo que já começou faz tempo. me orgulho de te ter como amiga.

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